No final do século XVIII, o Brasil ainda era uma colônia de Portugal, vivendo sob um regime autoritário e sem muitas das garantias jurídicas que hoje consideramos básicas. Um episódio importante desse período foi a Inconfidência Mineira, um movimento que buscava a independência da colônia, inspirado por ideias de liberdade e justiça.
No entanto, os envolvidos nesse movimento foram perseguidos, presos e julgados por um tipo de processo chamado devassa. Esses julgamentos, longe de serem justos, foram estratégias de repressão política e intimidação.
O que eram as devassas?
O termo devassa era usado no período colonial para designar investigações formais feitas pela Coroa portuguesa em casos considerados graves, como conspiração, traição, rebelião ou crimes contra o rei. Era uma espécie de processo criminal oficial, aberto para averiguar e punir qualquer ameaça ao domínio português.
No papel, as devassas deveriam buscar a verdade dos fatos. Mas, na prática, eram instrumentos do poder para condenar e punir os envolvidos conforme interesses políticos e econômicos da Coroa. Em outras palavras, tratava-se menos de justiça e mais de controle e repressão.
Na história do Brasil há registros de que diversos movimentos rebeldes foram julgados por esses processos, sendo alguns deles a Inconfidência Baiana (ou Revolta dos Alfaiates), conflitos de povos escravizados ou quilombolas e um dos mais populares, a Inconfidência Mineira do século XVIII, que cravou a personagem Tiradentes no movimento.
Dentre um dos crimes de punição mais severa desses julgamentos estava o de Lesa-Majestade, que era na tradução mais bruta do termo: a intenção de lesar à Coroa Portuguesa – uma definição bastante abrangente e que poderia envolver tudo o que representasse uma desobediências às ordens da realeza.
Quais eram as penas para o crime de Lesa-Majestade?
Ser punido pelo crime de Lesa-Majestade era condenar a si e a toda sua descendência, já que envolvia alguns rituais que assombram quem pensasse desafiar a autoridade real. Este tipo de pena envolvia:
1. Morte natural por forca
O condenado era enforcado em praça pública. O termo “morte natural” era usado para designar métodos de morte que causavam menos sofrimento aos condenados, como era no caso da forca. Esse tipo de execução também era vista como uma morte desonrosa, já que os povos mais nobres costumavam ter suas cabeças decapitadas.
2. Esquartejamento
Após a morte, o corpo era esquartejado — braços, pernas e cabeça eram separados e enviados para diferentes pontos da região onde o réu vivia, principalmente em locais públicos ou próximos à sua casa. Isso servia como advertência à população.
3. Sal nas terras
As terras do condenado eram salgadas. Espalhar sal simbolizava a infertilidade e o cancelamento total da memória do traidor. Era como dizer: “Nada mais deve crescer aqui.”
4. Remoção fiscal dos direitos da família
Os bens do condenado eram confiscados e sua família perdia direitos civis e políticos. Os filhos poderiam perder herança, títulos e até acesso à educação. Era uma forma de condenação hereditária, estendendo o castigo aos descendentes.
Como funciona um processo jurídico hoje?
Para que a gente possa entender a injustiça processual sofrida pelos separatistas na época da Inconfidência Mineira, é preciso olhar para como nosso ordenamento jurídico estrutura os processos hoje em dia.
Dentre inúmeros “rituais” para garantir o equilíbrio entre quem acusa e quem é acusado (autor e réu), está o direito ao contraditório, que foi uma das maiores ausências no processo das devassas.
Registrado no art. 5º da nossa Constituição Federal/88, o direito ao contraditório é a garantia de que toda pessoa acusada tem o direito de saber do que está sendo acusada, de ter acesso às provas e de poder apresentar sua defesa. Isso inclui o direito de falar, de ser ouvido, de contestar o que os outros dizem e de ter um advogado.
Como funcionava o processo jurídico nas devassas?
As devassas eram altamente burocráticas, centralizadas e autoritárias. Veja como esses processos geralmente aconteciam:
- Prisão preventiva: Os suspeitos eram presos antes mesmo de serem julgados. Muitos ficaram anos presos sem saber se seriam soltos ou condenados.
- Interrogatórios secretos: Os acusados não sabiam o que os outros diziam sobre eles. As testemunhas podiam falar sem confronto direto com os réus, o que dificultava a defesa.
- Produção de provas controlada pelo Estado: O juiz responsável (geralmente ligado ao poder da Coroa) era também o investigador. Isso tornava o julgamento parcial e tendencioso.
- Advogados com atuação limitada: Mesmo que o réu tivesse advogado, ele tinha poucas chances reais de contestar as provas ou influenciar a decisão final. O processo era quase sempre uma formalidade para justificar uma condenação já decidida.
- Sentenças políticas: A decisão não era só jurídica — era política. Em muitos casos, o objetivo era dar um exemplo, e não aplicar a justiça de forma equilibrada.
Tudo isso mostra que o direito ao contraditório — ou seja, o direito de se defender, de saber do que está sendo acusado e de responder às acusações — praticamente não existia nesse tipo de julgamento.
As penas “nada justas” das devassas para os inconfidentes
Vários participantes da Inconfidência Mineira foram presos, mas apenas um foi condenado à morte: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Ele era militar, de origem humilde e não tinha conexões políticas ou proteção da elite — ao contrário de outros inconfidentes, como Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, que tiveram suas penas comutadas (trocadas por exílio).
Tiradentes assumiu a responsabilidade pela conspiração e não delatou seus companheiros. Isso, somado à pressão da Coroa para fazer um exemplo público, levou à sua execução em 21 de abril de 1792, no Rio de Janeiro.
Seu corpo foi esquartejado e enviado a Minas Gerais, partes penduradas em postes e caminhos públicos, suas terras salgadas para se tornarem inférteis, seus familiares se tornaram infames e perderam direitos patrimoniais e, como se não bastasse, seu nome e registros foram proibidos para que logo se esquecessem de seu legado.
Como este processo colonial nos ensina sobre nossos direitos atuais?
As devassas foram mais do que processos legais: foram instrumentos de repressão política, usados para proteger os interesses da Coroa portuguesa e silenciar quem ousasse pensar diferente.
O processo injusto e parcial que levou à condenação de Tiradentes é um exemplo claro de como o poder pode manipular a justiça quando não há garantias como o contraditório e a ampla defesa.
Estudar esse episódio nos ajuda a valorizar os direitos que temos hoje e a entender que a justiça só é verdadeira quando todos têm voz, defesa e igualdade diante da lei.

